Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Gil, Preta e Drão
Gustavo Alarcão – SBPSP
Há duas semanas fui ao show de Gilberto Gil. A experiência foi tão intensa que comecei a escrever um pequeno texto para nosso Observatório Psicanalítico, psicanalista que sou! Algo me censurou: “você respira psicanálise? “A vida é maior”, descanse e apenas aproveite o que viveu
Duas semanas depois a vontade voltou e aqui estou. Dizem que são os últimos shows da carreira de Gil. Talvez. Há hora de começar e também de parar. Parar, interromper, terminar, separar, perder… O luto, o trabalho do luto, esse tema inesgotável e insuperável para todos os humanos.
Durante o show elaborava uma experiência pessoal que estava ocorrendo naquele dia, singela, mas importante. Gostaria que meu filho, Joaquim de 11 anos, tivesse ido comigo. “Pai eu não conheço as músicas”. “Tudo bem, no futuro você vai se lembrar desse dia, tenho certeza!”. Ele tinha se convencido, até que… Surgiu um programa mais divertido “Messi experience”, uma exposição super interativa sobre a carreira de Messi, para ir com os amigos. Ele foi. Fui sozinho. Fiquei pensativo: “estou exagerando com essas minhas vontades de pai”. Refleti sobre esse lugar da paternidade: a difícil conta entre o desejo do pai e o desejo do filho. “Vocês precisam escutar boas músicas”, digo sempre, caso contrário, seria somente Futparódias e funk. Difícil medida entre o desejo de um e o desejo do outro, dos limites entre a necessária influência e a nociva invasão. Difícil aceitar os pequenos lutos diários da paternidade, perdas necessárias para a emancipação e para o crescimento do outro.
Ao longo da apresentação fui me acalmando. As idas e vindas das vozes do pensamento, do diálogo entre “ele devia estar aqui comigo” e o “tudo bem, ele é uma criança, adora futebol e quer estar com os amigos” foram se aquietando e pude me deixar levar pelo que estava acontecendo ali, naquele momento, naquela noite de sábado.
As músicas de Gil me acompanharam em vários momentos de minha vida. É claro, todas essas lembranças me inundavam enquanto me deliciava com o espetáculo. Lembrar do ECEM (Encontro Científico dos Estudantes de Medicina) de 1999 e do violão que tocava com amigos de várias cidades que estavam naquele alojamento da Federal de Santa Catarina. Recuperar as rodas com os amigos de minha terra natal, Uberlândia, e dos acordes de Palco, A paz, Vamos fugir, A novidade, Cálice, Eu vim da Bahia, Woman no cry e tantas e tantas outras. Lembrar das minha tentativas de aprender ao violão aquelas canções foi revigorante. Me dar conta de que estava recentemente e novamente viciado em Tempo Rei também.
Se eu quiser falar com Deus me fez relembrar um dos meus primeiros contatos com a psicanálise. Uma aula no Instituto de Psiquiatria, no Serviço de Psicoterapia, onde tive a sorte de conhecer Oswaldo Ferreira Leite Netto e Paulo Stalkman. Recém chegado a São Paulo, com muita fome e apetite para viver, tive o imenso prazer de encontrar a psicanálise dentro da Residência Médica em Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, reconhecida por seu organicismo. Aquela aula foi uma das mais marcantes. Peguei o celular para escrever uma mensagem para o Paulinho na hora, para dizer o que eu estava sentindo naquele momento, dizer que aquele momento, aquela aula haviam sido fundamentais em minha trajetória. Ao discutir um caso clínico de um dos pacientes do hospital ele ilustrava um modo como concebia a forma que a psicanálise poderia ajudar o outro. Através da letra de Gil ele nos mostrava a importância de buscar antes de tudo nossas próprias análises: “era preciso comer o pão que o diabo amassou e aceitar que caminhamos por uma estrada que vai dar em nada do que pensávamos encontrar”. A psicanálise me era apresentada de forma muito viva e realista: era preciso calar a voz, soltar os nós dos desejos e dos receios, era preciso ter as mãos vazias e alma e o corpo nus. Fiz uma viagem no tempo. Foi impactante e decisivo em minha vida conhecer essa forma de se aproximar do sofrimento humano. Essa forma inteira e verdadeira, que não se escondia atrás de manuais de diagnósticos e prescrições medicamentosas. Esse campo que pregava um mergulho nos próprios demônios, medos e desejos, antes de sair dizendo o que os outros devem ou não fazer.
Drão foi tocada mais para o final do show. Estávamos todos ali já extasiados. Gil dedilha as primeiras cordas e surge Preta, amparada por duas pessoas, visivelmente abatida. Todos sabemos de sua luta para seguir vivendo. Ela se senta e eles começam a cantar. Foi a apresentação mais emocionante que já presenciei nessa vida.
Olhava ao redor e via no rosto dos desconhecidos as mesmas lágrimas que escorriam no meu rosto. A música, todos sabem, é poesia pura, feita no contexto da separação de Gil de sua mulher Sandra, mãe de Preta. Luto trabalhado, transformando-se em algo mais que a dor e a falta, sem negá-las. As palavras representando a angústia, as frases dando contornos aos indizíveis, os acontecimentos narrados formando a história de quem somos.
Gil, o artista e o pai, canta e se emociona. Sua voz embargada, trêmula, quase não sai. Eu ali, bem perto, me sinto em conexão visceral com aquilo que imagino ser o que ele vive: a despedida dos palcos e uma possível e dificílima despedida de Preta. Lutos finitos e infinitos, é o belo título de um dos livros de Christian Dunker, cuja leitura é preciosa. Respeitar a dificuldade de muitos lutos, e talvez seu trabalho infinito, quiçá impossível também é necessário. É uma excelente e necessária advertência para qualquer furor interpretandis.
Quando li Luto e Melancolia achei que tinha entendido o Luto e a Melancolia, Achei que tinha encontrado o “ouro psicanalítico”. Achei que enxergar a ambivalência dos sentimentos me dava assim uma espécie de sensação de “ser muito sabido”. Achei que tentar mostrar para as pessoas que suas saídas melancólicas, ainda que inconscientes, esbarravam “de verdade” em suas próprias dificuldades de assumir para si suas ambivalências, poderia levar a um certo tipo de desenvolvimento especial, superior, ou algo assim. Ora, bastaria ajudar a pessoa a compreender e aceitar suas próprias ambivalências: “você diz que ama? Mas você sabia que também pode odiar? Quanta arrogância e quanta imaturidade. Respeito cada vez mais o infinito ou o impossível de todos esses lutos.
Gil cantou com Preta, olhando-a no fundo dos olhos. Pai e filha, artistas. Ela dedica à música para sua mãe que estava na plateia. Ele a olha profundamente e, mesmo cantando, há um silêncio e uma cumplicidade em seus olhares que não precisa de qualquer palavra ou acorde. Quem estava lá sentiu isso tudo, de corpo e alma. Joaquim me contou como tinha sido o seu eio e como ficara feliz! Eu contei para ele como aquele show foi especial.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: psicanálise e cultura, luto, paternidade, subjetividade
Imagem: Show Gilberto Gil, São Paulo 26/04/2025. Foto do autor do ensaio.
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