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Dying for Sex – Sexualidade e Morte
Marina Bento Gastaud – SPPA
Molly, uma mulher jovem, descobre que seu câncer voltou após dois anos de remissão – desta vez sem chance de cura. Decide viver o tempo que lhe resta aventurando-se em novas experiências sexuais: distancia-se do marido (que não a deseja sexualmente há anos) e busca vivências eróticas com as mais diversas roupagens almejando experimentar um orgasmo na presença do outro. Essa é a premissa da série Dying for Sex, veiculada pela Hulu e pela Disney+ e lançada em abril de 2025.
Assim como em Breaking Bad, uma das tantas perguntas que Dying for Sex nos coloca é: que gozo se experimenta quando a morte iminente vira uma certeza? Que possibilidades de prazeres soterrados vem à tona quando a condição terminal nos liberta das performances socialmente e moralmente esperadas de nós?
Nem todo sexo é prazer ou união, e sexualidade é algo muito mais amplo do que sexo. Existem vários usos e tipos de sexo: sexo-conexão, sexo-intimidade, sexo-romance, sexo-reprodução, sexo-protocolo, sexo-entrega, sexo-defesa, sexo-fusão, sexo-masturbação, sexo-libertação, sexo-descarga, sexo-anestesia, sexo-distração, sexo-posse, sexo-compulsão, sexo-obsessão, sexo-vício, sexo-suicídio, sexo-destruição, e tantos outros.
Sexualidade para a psicanálise não é sinônimo de coito ou de genitalidade. Sexualidade é ligação, erogeneidade, pulsão de vida. Freud define a pulsão de vida como Eros na segunda tópica, dizendo que ela abrange tanto o instinto/pulsão sexual quanto o instinto autopreservativo. “Eros tem como meta tornar a vida mais complexa agregando a substância viva, fragmentada em partículas, em unidades cada vez mais amplas” (Freud, 1923, p. 55). Podemos então pensar no “erótico” como a força que agrega e que expande. Em terrenos ariados pela destruição das más notícias, a sexualidade pode ser o antídoto (não apenas a maquiagem ou o disfarce) que neutraliza a pulsão de morte.
Quando algo da ordem do acontecimento (Badiou, 1961) ou do traumático vira excesso e transborda a cadeia de significados, apresenta-se duas possibilidades: a destruição da barreira de contato ou a costura de novas viabilidades que expandem o continente. Freud (1924) nos ensina que o masoquismo erógeno originário está a serviço de proteger o ego da autodestruição, uma espécie de domesticação da pulsão de morte pela libido para não se aniquilar, “masoquismo como guardião da vida”.
Além disso, sexualidade, cuidado e apego são sistemas comportamentais diferentes, mas que acabam se associando (Mikulincer & Shaver, 2010), como ilustrado na relação de Molly com o marido, o vizinho, os amantes e com os aspectos homoeróticos da relação com a amiga. Há manifestações sexuais que são estratégias de sobrevivência psíquica. Nessa oscilação permanente entre objetalização-
Desde os tratamentos com as histéricas da Belle Époque, sabemos que o trauma (fantasiado ou real) tem seu componente na sexualidade (na época, considerado especialmente na sexualidade feminina). O elemento intrinsicamente traumático da sexualidade, através das confusões de línguas entre adultos e crianças e das mensagens enigmáticas que não encontram tradução, foi bem documentado por Ferenczi e Laplanche. Quando esse componente interno se junta ao componente traumático externo, sobram masoquismo, dor, histeria e melancolia.
Dying for sex parece confirmar essa ideia. Perverso-polimorfa, infantil, autocentrada, autista, destrutiva, maníaca. Disruptiva, corajosa, comprometida com o seu desejo, audaciosa. Apavorada, sem saída, vulnerável, ingênua. A protagonista da série vem sendo descrita com os mais variados tons que costumam compor a discussão sobre sexualidade feminina – e Michelle Williams dá conta de forma magistral de tamanha complexidade interpretativa. O que parece unânime é que ela regride diante da dor e da angústia. Sente-se abusada pela mãe, pelo diagnóstico e pela vida e revive a infância traumática aprés-coup durante a sua busca por um orgasmo (“lapetite mort”) compartilhado.
Kristeva (1982) define o abjeto como algo que perturba a ordem simbólica e a identidade do sujeito, ameaça a integridade corporal e psíquica e é rejeitado violentamente porque desafia a estabilidade do eu. A nossa relação abjeta com a morte sempre vai despertar fascínio, tesão, medo e repulsa. Walter White brinca de polícia e bandido após saber do seu câncer de pulmão com o mesmo entusiasmo com que Molly brinca de ser uma adulta sexuada após a constatação das metástases: gozando ora com a ilusão de dominação, ora com a certeza de serem (somos todos) dominados pela morte, essa grande vilã sedutora dominatrix.
Referências
BADIOU, A. (1961). El ser y el acontecimiento. Buenos Aires, Manantial, 2015.
FREUD, S. (1923). O Ego e o Id. Em Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XIX. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
FREUD, S. (1924). O problema econômico do masoquismo. Em Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XIX. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
GREEN, A. (2009). O trabalho do negativo. São Paulo, Artmed.
KRISTEVA, J. (1982). Powers of Horror: An essay on abjection. New York: Columbia University.
MIKULINCER, M. & SHAVER, P. (2010). Attachment and Sex. In. Attachment in adulthood: Structure, Dynamics, and Change. New York, The Guilford Press.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: sexualidade, sexo, morte, Eros, apego.
Imagem: foto de divulgação da série.
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