Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A exploração do “andar de baixo” ou o aluguel dos desejos
Sylvain N. Levy – SPBsb
O jornalista Élio Gáspari criou o termo “andar de baixo” para designar um estrato social com insuficiência de recursos, sejam financeiros, sociais ou cognitivos.
É esse estrato social que é o explorado de escolha, pelas elites ou aqueles do “andar de cima”, os que mandam no Brasil.
Podem ser usados como exemplo dois fatos que dão conformação a essa observação. O primeiro é a criação da Guarda Rural Indígena, em 1970, cuja cerimônia de formatura (em 3/2/1970) foi magistralmente retratada em filme por Jesco Von Puttkamer, cujos integrantes – indígenas – foram acusados de tortura, sequestro, estupros e violências variadas contra os indígenas que estavam designados para proteger.
A segunda é o perfil dos acusados pela participação na tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Segundo levantamento do jornal O Globo não são ‘velhinhas que carregam bíblias”, como propalam infundadamente setores vinculados ao bolsonarismo e às organizações de direita, mas sim, em sua maioria, homens brancos, de baixa renda, com escolaridade fundamental ou média. 41% receberam auxilio emergencial e apenas 1,21% tinham mais de 60 anos.
Pode-se especular sobre a razão da qual essas duas condições – guarda indígena e golpistas, além de integrarem o “andar de baixo” foram seduzidas pelo canto do “andar de cima” a ponto de atenderem sua convocação e fazerem o trabalho que essas elites desejavam. Como se deu essa transferência de desejo? Existiria um apelo comum (t desire) aos dois segmentos sociais (“andares”)? Principalmente em relação aos golpistas essa pergunta pode ser respondida com um sim, caso contrários os manifestantes seriam somente uma “massa de manobra” ou um bando sem iniciativas, o que obviamente não aconteceu.
Encontramos no editorial do OP “Sódepois 59” de março de 2025: “O fanatismo, caracterizado pela substituição da consciência individual por uma ideologia, por uma fé religiosa e pela desumanização do outro, impede a integração de nuances e busca o poder perverso. O “amae”, uma dependência emocional infantil, pode ser explorado por líderes para manter o poder”·.
As elites conformadoras do “andar de cima” introjetam ou se aproveitam da existência da pulsão de morte para matar os interesses individuais, os pensamentos e desejos próprios dos indivíduos, e fazem aparecer os sentimentos de ódio, de perseguição e de ameaça que habitam em cada um.
Como afirma Freud (1921, pag.33) “Partimos do fato fundamental de que o individuo integrado na massa sofre, sob sua influência, uma modificação, por vezes muito profunda, de sua atividade anímica. Sua afetividade fica extraordinariamente intensificada e, em compensação, notavelmente limitada sua atividade intelectual. Ambos os processos tendem a igualar o indivíduo com os outros membros da multidão, finalidade que só pode ser obtida pela supressão das inibições peculiares a cada um e pela renúncia às modalidades individuais e pessoais das tendências”.
Especificamente esta afirmativa pode ser constatada com os participantes do episódio de 8 de janeiro de 2023, que não enxergavam, compreendiam ou percebiam que seus atos tinham sequência e consequência, pois estavam embebidos na retórica de tomada do poder e foram levados a confundir destruição de prédios com destruição do regime e invasão de palácios com tomada de poder. Houvesse conhecimento histórico era a queda da Bastilha fantasiada na ocupação da Praça dos Três Poderes.
Freud fala sobre sugestibilidade e pusilanimidade introjetadas nos indivíduos ou por eles assumidas quando em turbas, o que retiraria nas situações de massificação, a capacidade do indivíduo em se auto gerir, o que pode ser estendido às propagandas e demais mensagens de comunicação intensiva.
O caráter libidinal da manifestação de massa pode ser visto na sensação de pertencimento que cada integrante carrega consigo e entrega na multidão. “Estamos juntos” é o brado coletivo, “o povo unido jamais será vencido” canta antigo slogan. E aí existe outro elemento importante nessas manifestações, a esperança. Entre outros, o prazer de estar com iguais, a proteção da identidade oculta (anonimato), a euforia do momento e a certeza de que participa de momento histórico (por menor que seja) geram a sensação libidinal de realização, de consumação de ato e de completude. E a satisfação garantida mesmo que os objetivos não tenham sido alcançados.
Podemos pensar que os objetivos não foram alcançados porque o efeito libidinal se esgotou nesses indivíduos ao se darem conta que não eram seus desejos autênticos mas transferidos de outrem, o que não permitiu que levassem seu intento aos limites, como os de arriscarem as próprias vidas para destruir etnias (principalmente Krenak e Guarani) no caso da Guarda Rural Indígena e os de confrontar forças policiais e militares no episódio de 8 de janeiro de 2023.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: extrato social, transferência de desejos, manifestação de massas, libido coletivo
Imagem: Jardim das Delícias Terrenas, (1504), de Hieronymus Bosch. Museu do Prado
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